O olhar como herança: mito, cultura e a percepção na arte
A arte, enquanto expressão, versa sobre determinados temas e conceitos que, por sua vez, traduzem ideias ou ideais em um terreno bastante ardiloso: aquele em que se espera uma interpretação para dar sentido à sua história. Interpretação essa que se revela como uma espada de dois gumes frente a um nó górdio, considerando que se espera desvelar uma possível verdade, bem como as intenções do artista ao criá-la.
Trazer à luz os contextos de uma determinada cultura trata-se de tarefa hercúlea, porém fecunda, na possível articulação dessa convergência entre a arte e o olhar. Esse ponto de intersecção permitirá analisar sua evolução sócio-histórica, mitológica e cultural, além de elucidar os mecanismos da captura óptica sob tais fenômenos, como as representações no inconsciente e a via simbólica pela qual a arte ganhará vida — o discurso do sujeito.
É fato que a arte não compreende somente a pintura e a literatura, mas uma diversidade de outras expressões que variam entre música, teatro, dança, cerâmica, escultura, fotografia, arquitetura e vasta pluralidade. Contudo, considerando ser esta uma proposta de reflexão, ao invés de um pensamento exaustivo ou sistemático, procurou-se, de forma sucinta, articular o investimento estético do olhar frente às manifestações do sublime.
Em face disso, levar-se-á em consideração a importância da palavra “transmissão” no percurso da história da arte. Como a própria etimologia nos revela, é um “ato de transferir”, de deixar um legado a outrem. E o olhar contemplativo, inquieto, analítico e reflexivo pode revelar-se uma herança de muito valor.
A Grécia Antiga, através da sua tradição mitológica, trouxe à tona para o pensamento ocidental a possibilidade de compreensão dos mais variados comportamentos humanos, em suas díspares manifestações da vida cultural, social e religiosa. Na construção coletiva sobre o “mito da Medusa”, Homero, na Odisseia, refere-se à cabeça de Górgona como “terrível”, por dotar olhos com a capacidade de transformar, dando ao sujeito uma nova configuração.
A denotação implícita no olhar da Medusa, como consequência e efeito de seu enigma, permite petrificar aqueles que viessem a mirá-la ou encará-la. Muitas análises e interpretações já se dispensaram nesse mito; porém, gostaríamos de sublinhar o caráter atemporal do olhar que se coloca em cena, resultado desse face a face. Atemporal, considerando que aquele que é petrificado, congelado, mumificado e entorpecido submete-se à pena ou ao castigo ad aeternum da imutabilidade estética.
A partir dessa premissa, abre-se um campo de reflexão sobre a tenebrosidade que, porventura, viria a pairar sobre a vida daquele que aria a ser escravo de uma eternidade imutável. E, de tal forma, revela uma similar interface com a dinâmica do inconsciente que, por sua vez, também é atemporal e repete determinados conteúdos que buscam incessantemente representações externas, como se estivesse “petrificado” em tais objetos, ao que se denomina em psicanálise como fixação.
Trazendo a teoria psicanalítica para o campo da cultura, enquanto intenção, Sigmund Freud (1856-1939) valorizou a herança escópica na arte e na história, vide em sua obra alusões ao mito de Narciso e aos afrescos renascentistas de Michelangelo (1475-1564). A pintura aludida a Michelangelo no teto da Capela Sistina data de 1512 e traduz a representação de muitos relatos bíblicos, entre os quais ganha destaque a icônica imagem da criação, onde Deus e Adão quase se tocam, mas há nesse pequeno espaço um distanciamento, um convite ao religare por meio da “imagem e semelhança”.
Uma imagem que é semelhança precisa de um ponto de referência. E só é possível fazer-se valer pelo olhar de um outro. No caso do famoso afresco, mesmo com o distanciamento dos dedos e dos corpos, há um religare pelo olhar, entre o criador e a criatura. Este — o olhar — mesmo tensionado pelo distanciamento espacial, insiste em perpetuar-se como um gesto de serenidade e placidez.
Entre o olhar terrível de uma Medusa grega e a mansuetude do Deus de Abraão, a arte, o mito, a cultura, a história e a religião são atravessadas por uma herança comum: a transmissão e intromissão do olhar que nos ensina consequências e responsabilidades frente ao desconhecido.
Herman da Costa Oliveira é 2º secretário da Academia Sorocabana de Letras.